quinta-feira, março 16, 2017

Turismo Espacial: rejuvenescimento através da iniciativa privada?

O turismo espacial representa uma das formas mais extravagantes da atividade, tanto pelo seu custo, como pela sua própria natureza. Realisticamente, são muito poucos os indivíduos que têm a oportunidade de realizar um voo orbital, tanto como turistas quanto como funcionários de uma agência espacial. Aqueles que o conseguem juntam-se a um pequeno leque de pessoas que não só puderam observar o nosso planeta a partir de um invejável ponto de vantagem mas também serão recordadas na história como as primeiras a iniciar a exploração humana do cosmos. Ser um turista no espaço não representa só uma realização pessoal mas, também, uma experiência inigualável.
Contexto Histórico
O voo orbital tripulado existe há pouco mais de 50 anos. Antes de prosseguir, é necessário clarificar o que constitui um “voo espacial”. Para a Fédération Aéronautique Internationale, um voo que ultrapasse a linha de kárman constitui um voo espacial. A linha de kárman situa-se a cerca de 100 km de altitude, onde a densidade do ar é tão baixa que, para as asas de um avião/nave gerarem sustentação suficiente, este teria que voar a uma velocidade superior à necessária para escapar à gravidade terrestre (velocidade orbital). Essencialmente, isto significa que acima desta linha uma nave não necessita de asas para se manter numa órbita estável.
Tecnicamente, um voo que ultrapasse esta linha pode ser considerado um voo espacial, mesmo que este não possua a velocidade suficiente para se manter numa órbita estável, e seja puxado outra vez para a terra antes de concluir uma volta inteira ao planeta. Isto designa-se como um “voo sub-orbital”, enquanto um voo que ultrapasse a linha de kárman e possua uma velocidade superior ou igual a 8km por segundo (velocidade à qual uma nave escapa à força gravitacional terrestre, também conhecida como velocidade orbital) é considerado um “voo orbital”.
A totalidade dos voos espaciais tripulados são voos que chegam pelo menos a atingir uma órbita estável à volta de terra, mas os primeiros engenhos a ultrapassarem os 100 km de altitude eram voos sub-orbitais não tripulados (o primeiro destes voos foi curiosamente o míssil de cruzeiro V-2, desenvolvido nos anos 40 na Alemanha, durante a guerra).
Nos anos 50, a tecnologia avançou rapidamente, e em 1957 a URSS consegue colocar um satélite não tripulado em órbita terrestre (Sputnik 1). Semanas depois, o Sputnik 2 é colocado em órbita, com o equipamento de suporte de vida para uma cadela chamada “Laika”. Em 1961, é colocado em órbita o primeiro ser humano, Yuri Gagarin.
Durante a guerra fria, nos inícios dos anos 60, os EUA vão acompanhando o progresso científico dos soviéticos, lançando os seus próprios voos orbitais tripulados (os programas Mercury e Gemini). O primeiro rendez vous entre duas naves no espaço dá-se em 1965, com duas naves do programa Gemini americano e, nos anos seguinte, após outro rendez vous feito com sucesso, duas naves atracam uma na outra, permitindo a troca de tripulantes/equipamento entre ambas as naves. A mestria destas duas manobras (rendez vous e atracagem) é essencial hoje em dia nos voos para a ISS. Em 1968, é realizado o primeiro fly-by tripulado à volta da lua, pela missão Apollo 8 (colocando os EUA na frente da corrida espacial) e, no ano seguinte, a missão Apollo 11 consegue fazer um fly-by e aterrar um módulo tripulado na superfície lunar, regressando à terra com todos os três tripulantes.
Inícios do Turismo Espacial
Depois do fim do programa Apollo e da corrida espacial, as duas principais organizações governamentais dedicadas à exploração do espaço, a NASA e a Agencia Federal Espacial (ex-URSS) passaram a dedicar-se não à conquista de novos recordes mas à instauração das primeiras estações espaciais para o desenvolvimento de investigação científica em ambientes de baixa gravidade, e à tentativa de reduzir os custos das viagens espaciais. Os EUA realizaram com sucesso o programa do Space Shuttle, enquanto os soviéticos tentaram a sua própria versão, conhecida como “Buran”, mas o programa foi desmantelado por falta de fundos, nos inícios dos anos 90, antes de qualquer voo tripulado ter sido realizado.
Durante as missões de transporte realizadas pelos vaivéns americanos, em várias missões, um dos membros da tripulação era um representante da empresa que desenvolveu o equipamento que o vaivém era suposto colocar em orbita. Esse membro da tripulação não tinha o mesmo nível de treino que era exigido aos restantes astronautas da NASA, mas o propósito da sua viagem não era necessariamente turístico, mas sim avaliar a implementação do equipamento desenvolvido pela sua empresa. A viagem era também paga pela empresa, e não pelo funcionário.
Nos anos 80, o governo soviético, assim como o americano, apoiaram financeiramente o voo de civis, após estes terem recebido treino básico para sobreviver no espaço. Os indivíduos que participaram nestes voos foram os vencedores de concursos realizados pelo estado, e, apesar de terem as viagens pagas, ainda tinham que desempenhar tarefas de cariz científico.
O primeiro voo totalmente pago pelo indivíduo que participou nele foi realizado em 2001. Dennis Tito, num acordo com a Roscosmos (a atual agencia espacial Russa), visitou a ISS a 28 de Abril, a bordo da Soyuz TM-32, regressando 8 dias depois na Soyuz TM-31. A viagem custou-lhe aproximadamente 20 milhões de dólares. Do período de 2001 a 2010, a agência espacial russa vendeu alguns voos a particulares até à ISS.
As cápsulas das naves Soyuz russas têm o equipamento necessário para suportar 3 tripulantes e, durante as missões de substituição de tripulação para a ISS, a Roscosmos viu uma oportunidade de negócio ao ceder um dos lugares na cápsula e levar apenas 2 cosmonautas de uma vez. Seis turistas mais visitaram a ISS abordo de naves Soyuz até 2010. Um deles, Charles Simonyi, fez duas viagens. A última, realizada em 2009 por Guy Laliberté (o fundador do Cirque du Soleil), custou aproximadamente 40 milhões de dólares.
A partir de 2010, a necessidade de ter mais tripulantes na ISS inviabilizou a possibilidade de a agência espacial russa vender lugares nas suas cápsulas espaciais (pois as novas tripulações iriam ocupar todos os 3 lugares). Em 2011, a Space Adventures (a empresa que serve de intermediária entre o turista e a Roscosmos) anunciou que seria possível retomar voos turísticos à ISS se mais naves Soyuz fossem construídas. No entanto, isto não se materializou e, com o desmantelamento dos vaivéns espaciais americanos em 2011, a pressão sobre as naves Soyuz aumentou. Até hoje, estas constituem o único meio de colocar seres humanos no espaço, pelo que mais nenhum turista visitou a ISS desde 2009, através de agências governamentais.
Iniciativas Privadas
Com o sucesso das viagens turísticas abordo das naves Soyuz, várias empresas privadas começaram a ver o potencial comercial das viagens espaciais. Até agora, apenas grandes empresas, ou subsidiárias de grandes empresas, demonstraram interesse neste mercado. Os elevados custos envolvidos no processo de R&D, na construção do equipamento e no treino das equipagens/turistas, implicam que só grandes multinacionais possam com sucesso trabalhar neste setor. Até agora, nenhuma empresa privada colocou turistas acima da linha de kárman, mas empresas como a SpaceX (de Elon Musk) já tiveram sucesso a transportar carga para a ISS e a realizar experiências com lançadores espaciais recicláveis.
A Boeing, em cooperação com a Bigelow Airspace, está a trabalhar no CST-100 Starliner, uma cápsula espacial compatível com vários lançadores espaciais existentes, com capacidade para 2 tripulantes. É semelhante à Orion (que está a ser desenvolvida pela Lockheed Martin para a NASA), e funciona de maneira semelhante à nave Soyuz, mas está planeado que o seu uso seja feito tanto pela NASA como por empresas privadas, como a Bigelow Airspace, que planeiam construir estações espaciais privadas, destinadas a servirem de hotéis para os turistas. A cápsula CST-100 tem o seu primeiro teste não tripulado agendado para meados de 2018, e, se tiver sucesso, o seu voo inaugural terá lugar em finais do mesmo ano.
A Space Adventures, com o projeto Deep Space Expedition Alpha, planeia atracar um foguete otimizado para operações no vácuo do espaço a uma cápsula             Soyuz modificada, e fazer uma viagem de fly-by à lua, a um custo de 150 milhões de dólares. No entanto, a empresa tem sido criticada pelo facto de o foguete que eles planeiam usar para fazer a manobra de translação de órbita terrestre para a órbita lunar não possuir a energia suficiente. Apesar de um bilhete já ter sido vendido e a missão ter sido adiada por duas vezes, a empresa permanece comprometida a realizá-la até ao final da década. A Space X, de Elon Musk, afirmou este ano a intenção de fazer uma viagem semelhante, possivelmente já no final de 2018. Segundo o empresário, o projeto já conta com financiamento substancial por parte de dois indivíduos.
Existe ainda a proposta de construir estações espaciais destinadas exclusivamente a uso privado. Isto iria incluir a finalidade de servirem de hotéis para eventuais turistas espaciais. A Bigelow Airspace e a Space Island Group demonstraram interesse em tais projetos. A Bigelow Airspace já construiu, com fundos próprios, dois veículos de teste, o Genesis I e o Genesis II. Este último, lançado em 2007 num foguete do governo russo, sem tripulação, permaneceu em órbita durante mais de dois anos, apesar de ter sido desenhado para manter estabilidade durante apenas 6 meses. O objetivo do programa, de testar a viabilidade de módulos habitacionais expansíveis, foi um sucesso. O Genesis II, após atingir a órbita, autoinflacionou-se através de sistemas de pressurização, aumentando o espaço disponível dentro da nave. A mesma empresa colocou na ISS, em 2016, o BEAM (Bigelow Expandable Activity Module), que, através de sistemas semelhantes aos do Genesis II, expandiu o espaço disponível dentro da ISS após atracagem.
Um tipo de turismo espacial que envolve menos riscos, e potencialmente menos custos, é o turismo sub-orbital. A ideia é realizar um voo que ultrapasse os 100 km de altitude estipulados na linha de kárman como a linha que delimita o fim da atmosfera e o início do espaço, sem ter que atingir a velocidade necessária para chegar a uma órbita. Quanto menos velocidade for preciso, menos combustível é necessário, e menor terá de ser a nave em si, reduzindo consideravelmente os custos. Empresas como a Blue Origin e a Armadillo Aerospace demonstraram interesse em explorar este conceito.
No entanto, empresas como a Virgin Galatic aproximaram-se da ideia de voos sub-orbitais de uma perspetiva diferente. A sua nave, o SpaceShipTwo, consiste numa espécie de híbrido entre nave e avião. Apesar de possuir asas para ter sustentabilidade durante o retorno, o aparelho é propulsionado por um foguete, à semelhança de uma cápsula espacial. Este é levado até uma altitude de 15 km acoplado a um avião propulsionado por os mesmos motores encontrados nos jatos comerciais. Após chegar a esta altitude, o SpaceShipTwo separa-se do avião-mãe e inicia o seu foguete, que o leva acima da linha de kárman. Depois de acabar o combustível, o foguete desliza de volta à terra.
Este aparelho foi baseado no SpaceShipOne, que bateu em 2004 o recorde de altitude para aviões sub-orbitais establecido pelo X-15 nos anos 60. Infelizmente, devido a um acidente em 2014, um dos SpaceShipTwo foi perdido, resultando na morte de um dos pilotos. Até à data, 700 bilhetes para este tipo de voos já foram comprados à Virgin Galatic, por 200 mil dólares cada.
A ideia de turistas no espaço é, hoje em dia, algo que parece longínquo. Apesar de já terem existido turistas abordo de naves do governo, o turismo espacial só vai vingar como mercado se entidades particulares puderem lucrar com o negócio. A procura deste tipo de produto, apesar de vir de um número seleto de indivíduos, faz-se sentir no montante que estes estão dispostos a pagar, tanto por viagens garantidas à Roscosmos, como por reservas em viagens planeadas pela SpaceX e pela Virgin Galatic.
Apesar de algumas das ideias serem altamente questionáveis quanto à sua capacidade de concretização a nível científico, as empresas que estão a apostar neste setor têm perfeitamente noção dos riscos que correm. Na minha opinião, não é só o lucro que lhes dá a motivação para continuarem o seu trabalho. A vontade de quebrar barreiras, de trazer algo novo, de tornar o espaço acessível a um número cada vez maior de pessoas, se concretizada, é quase que uma recompensa em si própria. Vários voos de teste estão agendados para os próximos anos. Só no futuro saberemos se este mercado será viável.

Rui Manuel Alves Martins  

 (Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Economia do Turismo”, de opção, lecionada a alunos de vários cursos de mestrado da EEG, a funcionar no 2º semestre do ano letivo 2016/2017)

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